A Lei de Igualdade Salarial e os impactos da LGPD

26/03/2024

Promulgada em 3 de julho de 2023, a Lei de Igualdade Salarial visa promover a igualdade salarial e de oportunidades entre mulheres e homens no mercado de trabalho, contudo, esta não é a primeira legislação em que o tema é tratado no Brasil. A proibição de diferença salarial baseada em sexo já era expressa na constituição desde 1934: “A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições de trabalho, na cidade e nos campos, tem em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador: Proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil.”.

O dispositivo acima é recorrente nas constituições federais promulgadas após esta e, também tratado na própria Consolidação das Leis de Trabalho – CLT. Ademais, o assunto é tratado na Convenção nº 100 da Organização Internacional do Trabalho – OIT – em que o Brasil ratificou o compromisso de assegurar a equidade salarial. Por outro lado, a disparidade entre os salários de homens e mulheres no Brasil segue sendo expressiva. De acordo com estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –  IBGE (2021), ainda que disparidade tenha diminuído entre os anos de 2002 e 2019, as mulheres recebem o equivalente a apenas 77,7% do salário pago aos homens do mesmo grupo ocupacional.

Diante do exposto acima, entende-se que ainda que tenham sido ampliadas as políticas sociais voltadas às mulheres, estas não foram suficientes para acabar com a disparidade salarial entre gêneros. Pensando nisto, o legislador brasileiro publicou a Lei no 14.611/2023 com o objetivo de estabelecer equiparação salarial entre homens e mulheres através de fiscalização, transparência sobre salários e sanções em caso de descumprimento da legislação.

O principal avanço desta Lei é trazer consigo a obrigatoriedade de publicação de relatórios semestrais de transparência salarial e requisitos remuneratórios das empresas que contam com 100 (cem) funcionários ou mais e caso seja constatada a desigualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens, as empresas deverão elaborar e implementar Plano de Ação para mitigação destes aspectos. No mais, a legislação prevê sanções como a aplicação de multa de até 3% da folha salarial, limitada a 100 (cem) salários-mínimos para aqueles que descumprirem a legislação.

Em novembro de 2023, foram publicados o Decreto nº 11.795 e a Portaria MTE nº 3.714 que tem por objetivo regulamentar os dispostos na respectiva Lei.

O decreto supracitado dispõe sobre o Relatório de Transparência Salarial, documento cuja finalidade é comparar objetivamente salários, remunerações e proporção de ocupação de cargos, compreendendo informações como salário contratual, décimo terceiro, gratificações, comissões, horas extras, adicionais noturnos, de insalubridade, penosidade, periculosidade, terço de férias, aviso prévio trabalhado, descanso semanal remunerado, gorjetas e demais parcelas que, por força da lei ou norma coletiva de trabalho, componham a remuneração do colaborador. Este relatório deve ser elaborado nos meses de março e setembro por meio de ferramenta informatizada do Ministério do Trabalho e Emprego e divulgado nos sites das empresas e em outras plataformas, como redes sociais.

E é neste ponto que a Privacidade e Proteção de Dados passa a ter papel importante o suficiente para ser citada no contexto da Lei de Igualdade Salarial. Após discorrer sobre as informações que deverão ser dispostas no Relatório, o parágrafo 20 do artigo 2º determina que: Os dados e as informações constantes dos Relatórios deverão ser: Anonimizados, observada a proteção de dados pessoais de que trata a Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018 […]”.

A Lei 13.709/2018 refere-se à Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, realizado por pessoa jurídica ou pessoa física, e que tem o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. A LGPD, visa dar maior controle aos titulares de dados pessoais, estabelecendo princípios para o tratamento dos dados pessoais, hipóteses em que o tratamento de dados pessoais pode ocorrer, direitos dos titulares, entre outros requisitos que devem ser cumpridos pelas organizações que tratem dados pessoais.

De acordo com a LGPD, dados pessoais são informações relacionadas às pessoas naturais que possam torná-la identificada ou identificável. Os dados pessoais podem identificar um titular, uma pessoa física, de forma direta como nome, número de cadastro de pessoa física (CPF), foto, entre outros, ou de forma indireta, ou seja, quando são necessários outros atributos para identificação, como cargo, endereço, vencimentos, entre outros.

Com isto, gerou-se uma série de questionamentos quanto a possibilidade de as informações, cujo envio é obrigatório através do Relatório de Transparência Salarial, tornarem um titular identificável. Isto pode ocorrer pois ainda que os relatórios encaminhados ao Ministério do Trabalho não contenham dados pessoais que possam identificar diretamente um titular (como CPF, nome completo, RG), a associação das demais informações, podem possibilitar sua identificação. Por exemplo, dentre as informações obrigatórias estão: sexo, vencimentos e o código de classificação brasileira de ocupação – CBO. Caso uma empresa conte com uma única colaboradora do sexo feminino registrada em determinado CBO, é possível identificá-la e ainda tomar ciência de seus vencimentos, o que pode ser considerado uma violação ao direito constitucional à vida privada. Além de violação aos dispositivos legais presentes na constituição, a divulgação de dados pessoais relacionados à renda e remuneração podem trazer riscos à segurança do indivíduo, causar instabilidade no ambiente corporativo e impactar a livre concorrência e a liberdade econômica.

De acordo com a LGPD é possível que o compartilhamento dos dados pessoais seja realizado de forma legítima, se este for realizado por força de Obrigação Legal ou Regulatória. Com isto, a divulgação dos dados pessoais para atendimento da Lei no 14.611/2023 teria fundamentação legal válida.

Ademais, na tentativa de manter a privacidade dos colaboradores, a própria Lei de Igualdade Salarial e o decreto que a regulamenta preveem uma saída: anonimizar as informações que possam identificar um titular. De acordo com a LGPD a anonimização é “a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis no momento do tratamento, por meio dos quais um dado perde a possibilidade de associação, direta ou indireta, a um indivíduo”. Dentre as técnicas de anonimização destacam-se o tarjamento das informações, a substituição de caracteres e a generalização.

Não fica claro na Lei e nos demais dispositivos que a regulamentam se a anonimização deve ser realizada no Relatório de Transparência Salarial que deve ser encaminhado ao Ministério do Trabalho ou se as informações devem ser anonimizadas quando da divulgação do relatório em meio oficiais das empresas. Com isto, é questionável se o ato de anonimizar os dados pessoais podem ou não prejudicar o objetivo da Lei destinada a identificar possíveis desigualdades salariais nas empresas, uma vez que informações consideradas obrigatórias deixarão de constar nos relatórios.

Mas então, como atender à Lei de Igualdade Salarial sem ferir a LGPD? E por outro lado, como atender à LGPD sem descumprir a outra? É a partir daqui que o caminho a seguir passa a ser tortuoso. A resposta é: depende. Depende da interpretação da própria Constituição, da interpretação dos juízes, da execução de testes de proporcionalidade, testes de equilíbrio de interesse, tudo com o objetivo de determinar qual direito deve prevalecer. A priorização pode depender também do contexto e da gravidade da violação de cada um. Há quem defenda ainda que a legislação mais recente deve prevalecer sob a legislação mais antiga.

Ainda que os órgãos governamentais, como o próprio Ministério do Trabalho, divulguem em seus sites oficiais notícias dizendo que divulgação de salários de homens e mulheres não mostrará nomes de colaboradores, há juízes dando pareceres de acordo com as próprias interpretações de ambas as legislações.

No final de fevereiro, foram concedidas duas liminares a favor das empresas Drogaria Pacheco S/A e Drogaria São Paulo que as desobrigam a enviar as informações relacionadas às campanhas de igualdade salarial, promoção interna de funcionários e a divulgação dos respectivos relatórios de transparência salarial em seus sites e/ou redes sociais. A decisão referente ao pedido da Drogaria Pacheco S/A se deu sob a justificativa de que “[…] a intenção do legislador ordinário é garantir a igualdade salarial entre homens e mulheres, e não se vislumbra motivo para que ao menos em linhas de princípio, tal fiscalização não possa ocorrer através de bancos de dados muito mais precisos, tais como o próprio e-Social, do FGTS, do CNIS e outros, protegidos pelo devido sigilo.”. Há de se destacar aqui, a razoabilidade dos argumentos apresentados pelo magistrado. Por outro lado, o Sindicato Intermunicipal das Indústrias do Vestuário do Paraná teve sua liminar negada sob justificativa de “não cabe mandado de segurança contra lei em tese.” e que não há prova de comportamento legal que justifique a desobrigação. Percebe-se a aqui, a aplicabilidade de tecnicidade na decisão do judicionário.

A regulamentação da Lei de Igualdade Salarial, por meio do Decreto e Portaria citados, demonstra um compromisso efetivo na promoção da igualdade de gênero no ambiente de trabalho, contudo, a interação entre estes e a LGPD reforça a necessidade de abordagens holísticas, considerando tanto a equidade quanto a privacidade dos indivíduos. Este é um passo significativo em direção a uma sociedade mais inclusiva e justa, porém há claros indícios que a sistemática estabelecida pela Lei, através dos instrumentos citados anteriormente, deve sopesar o impacto à privacidade dos titulares de dados pessoais de forma muito mais rígida.

LF Auditoria e Consultoria

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