Consentimento esclarecido: mera ficção?

18/02/2022

Uma questão que tem se destacado nos últimos tempos é a do consentimento livre e esclarecido que consta na LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (13.709/2018) – como um dos requisitos para tratamento de dados pessoais. O consentimento colhido em páginas da internet ou em aplicativos é mesmo esclarecido? O cidadão comum está apto a entender de forma integral os termos de uso ou os contratos que informam sobre o tratamento dos dados pessoais?1

Quando utilizamos qualquer aplicativo ou acessamos qualquer conteúdo na internet somos levados a uma página ou tela em que temos que aceitar os termos de uso.2 São parágrafos e mais parágrafos com linguagem tecnológica e jurídica que, convenhamos, quem está louco para acessar uma rede social ou um aplicativo da moda, jamais terá paciência para ler e minimamente entender.

Tais aplicativos ou acesso a conteúdos, muitas vezes ditos gratuitos, são muito bem remunerados com um valiosíssimo ativo: dados para serem transformados em informação e lucros e, por isso, devem, de acordo com a LGPD, ser disponibilizados de forma consciente pelo titular dos dados, isto é, o consentimento deve ser informado, livre, expresso, específico e inequívoco.

Entretanto, estudos empíricos têm demonstrado que é muito pequeno o número de pessoas que leem os termos de uso ou os contratos firmados pela internet: um desses estudos afirma que apenas 0,05% a 0,22% abrem o link onde constam os termos de uso e somente uma ínfima parcela destes deixa a janela aberta por tempo suficiente para ler seu conteúdo integralmente3.

Ou seja, se as pessoas não leem os clausulados, como exigir delas seu entendimento? Como dizer categoricamente que determinada pessoa consentiu de forma esclarecida sobre o tratamento de seus dados pessoais?

Quando alguém aceita os termos de uso de um aplicativo não quer nada além do que utilizá-lo. Não quer autorizar o tratamento e a monetização de seus dados pessoais, pensa apenas nos aspectos envolvidos diretamente com o produto e não com outros aspectos, como o de ter seus dados coletados por meio de cookies para finalidades empresariais alheias aos seus interesses.4

Assim, o titular dos dados começa a utilizar os serviços e quando ocorre algo que crê ilícito, como por exemplo, que terceiros tenham acesso aos seus dados sem autorização, procura o Judiciário para proteção de seus direitos.

 Ato contínuo, vê-se contraditado pelo advogado da empresa ré com o argumento de que deu seu consentimento de forma livre e esclarecida sobre o que fariam ou deixariam de fazer com seus dados, quando passou a utilizar o aplicativo “x” de uma empresa parceira.

Nesse momento, o titular dos dados alega que não leu os termos de uso e que, mesmo se tivesse lido, não teria entendido que seus dados seriam repassados a terceiros, o que é refutado pelo advogado, que afirma que o consentimento esclarecido pode ser comprovado com o “log” do sistema, que demonstra que o clique no botão “aceito” está devidamente vinculado ao IP – Internet Protocol – do dispositivo do autor da ação e que, inclusive, a barra de rolagem da janela aberta, com os termos de uso, foi corrida até o final, demonstrando que o contrato foi lido por inteiro.

No entanto, o uso de um computador pessoal ou de um smartphone pode ser compartilhado com terceiros, que para terem acesso à determinada página na internet ou aplicativo, aceitam os termos de uso, vinculando um dispositivo que guarda informações de seu proprietário e não do usuário eventual (terceiro), sendo que os cookies instalados coletam dados de uma pessoa que, sequer, utilizou o serviço.

Assim, fica claro que vincular o clique no botão “aceito” à determinada pessoa é algo que, primeiramente, não demostra de forma inequívoca que o clique foi dado pela pessoa que tem a propriedade do smartphone ou do computador pessoal e, menos ainda, demonstra que o botão “aceito” foi clicado após o pleno entendimento dos termos.5

Porém, o titular dos dados não pode ser prejudicado por uma presunção de que o consentimento foi esclarecido. Se o entendimento dos termos é tratado como uma ficção, nada mais justo do que dar ao titular um tratamento diferenciado, pois a relação jurídica deve ser reequilibrada, sendo que, se há sujeição a uma presunção de entendimento, haverá de ter uma maior proteção, no sentido de que cláusulas abusivas, obscuras, ambíguas ou limitadoras de direitos possam ser anuladas a despeito do consentimento dado.

No entanto, a LGPD, assim como outras leis de proteção de dados pessoais estrangeiras, busca adjetivar o consentimento de forma a qualificá-lo para além do consentimento meramente informado6. Nesse sentido, a exigência de que a empresa prove de maneira inequívoca que o titular de dados leu e compreendeu os termos do contrato ou dos termos de uso não deveria estar sob a influência da mera transparência7, que exige que o fornecedor apenas comprove que disponibilizou os clausulados para leitura.

Isso se deve ao princípio da autodeterminação informativa, que dá poderes ao titular de dados para fazer, de forma consciente e esclarecida, aquilo que achar por bem com seus dados pessoais, sendo que o judiciário deveria exigir a comprovação da leitura e do entendimento do contrato, não bastando a prova da mera abertura de um link com as cláusulas.

A fim de contribuírem com a possibilidade do consentimento esclarecido, alguns autores propõem que as cláusulas que restringem direitos devem ser destacadas e que devam exigir anuência expressa e específica, não bastando a simples referência à política de proteção de dados e privacidade8.

Outros propõem que os termos de uso e que as políticas de privacidade sejam mais bem explicitadas, utilizando-se, para isso, de meios mais atrativos do que a leitura de contratos9.

Poderiam ser propostas diversas soluções para que se tentasse proporcionar maior esclarecimento ao titular de dados, como o uso de vídeos explicativos, de questionários, de resumos dos principais pontos ou simplesmente de um lapso de tempo suficiente entre o acesso às cláusulas e o aceite, já que não faltam recursos para que empresas de alcance global e altamente tecnológicas utilizem parte deles para traduzir para uma linguagem acessível os termos de consentimento.

 Entretanto, tais soluções são apenas uma tentativa vã de se dar a conhecer os termos de uso ou os contratos, posto que, talvez, nem mesmo com informações mais palatáveis estivéssemos dispostos a utilizar nosso tempo com coisas que falam sobre os nossos direitos, dado o elevado interesse em desfrutar do serviço da forma mais imediata possível e a forte sensação de que a leitura é inútil.

O tratamento de dados pessoais é coisa fluida e o cidadão comum não sabe muito bem do que se trata10, pois envolve conceitos tecnológicos pouco acessíveis. Dessa forma, sobrecarregar o titular dos dados com a obrigação de um entendimento completo acerca de seu tratamento é uma forma de injustiça, já que o agente de tratamento não tem nenhuma obrigação expressa estabelecida na LGPD de informar de modo minimamente inteligível para todos os riscos possíveis, até mesmo, porque as empresas que alertassem desse modo poderiam ter seus lucros prejudicados.

Conclui-se que, por mais que a LGPD tenha dado poderes ao titular dos dados pessoais para a autodeterminação informativa, não fez exigências mínimas para que os termos de uso ou os contratos sejam claros o suficiente para que o cidadão possa consentir de modo inequivocamente esclarecido. E, dada essa falha, a ficção do consentimento esclarecido deve ser neutralizada por uma proteção mais robusta aos titulares de dados com a relativização do consentimento em casos específicos de prejuízos aos seus direitos.

Fonte: Migalhas.

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